Por João Cirilo.
Chamava-se
Dorziro Prudente e era português de Évora. Vivia de rendas como filho único de pais
abastados, mortos num acidente de carro havia alguns anos, e morava no Rio.
Casado em segundas núpcias – tinha 3 filhos do primeiro enlace – com Célia
Áurea, que em matéria de amor tinha um temperamento eclético que Dorziro desconfiava,
mas, conservador que era, tolerava mais
em nome das convenções do que qualquer outra coisa.
Mas, se
desilusões amorosas são, dentro do possível, aceitáveis e contornáveis, não o
são desconfianças mais sérias sobre assassinatos. Primeiro dos pais dele: dona
Ana e seu Geraldo morreram num acidente de automóvel por falha mecânica, o que
era muito estranho já que o velho era meticuloso com essas questões. Seja como
for, a comoriência foi bem vinda para a Aurinha, que casada pelo regime da
comunhão universal de bens com Dorziro, transformava-se em herdeira no mesmo
ato em que se livrava da sogra, que nunca aceitou o casamento do filho com
“aquela sirigaita”.
Além disso,
havia a história do incêndio na casa de campo. Dorziro gostava de passar
algumas horas num apartamento isolado da casa principal para ler, ver televisão
ou tirar uma soneca. Num final de semana o local pegou fogo: só os dois estavam
no sítio e ele cismou que ela havia acendido o fogaréu. Certo que nunca provou
nada, talvez tudo não passasse de uma desconfiança, mas a desconfiança é assim,
vai chegando de mansinho e depois que se instala não há meio de sair.
João Ernesto
Cordeiro Leal era investigador de polícia e investigava o incêndio no sítio;
portanto, encontrava-se costumeiramente com o casal. Dorziro percebeu sem muito
esforço um derramar de olhos de sua mulher para o policial; uma espichada de
prosa, um não-sei-quê de mesuras, um toque mal disfarçado (para não dizer sem
disfarce algum) de vívido interesse.
Cordeiro era
acima de tudo leal e se fazia de desentendido, seus olhos evitavam fitar os
dela, fugiam apavorados com a atração fatal que a moça exercia através deles.
Ah! Se fossem somente os olhos, mas a boca, o corpo, a voz: tudo exalava um
cheiro gostoso e pecaminoso de sexo. Mas, lealdade acima de tudo...
O que Cordeiro
Leal não podia esperar era o comportamento de Dorziro, que um dia o abordou em
particular:
- Diga-me cá, gajo, a minha mulher
espicha uns olhares para ti, estou certo?
O policial, que
tinha sincero afeto pelo portuga e tomado pelo susto, procurou desconversar:
- De, desculpe senhor Prudente, gaguejou,
mas não é nada disso, sua mulher é decente e...
- Acalme-se rapaz, acalme-se, prá começo
de conversa me chame de Dorziro.
- Sim, senhor Dorziro.
- Pois muito bem, jovem. Eu simpatizo
contigo e acho até que a simpatia é mútua, pois não?
- Não, quero dizer, sim senhor Dorziro.
É exatamente isto. Eu gosto muito do senhor, e mesmo se sua esposa tivesse
algum interesse em mim eu jamais deixaria isso fluir por conta do respeito, da
amizade e do carinho que nutro pelo senhor. Uma amizade sincera vale por mil afoitezas
do coração!
- Ah, falaste bem, meu jovem, falaste
bem. Mas, diga-me cá, Cordeiro Leal, a minha mulher não te interessa nem um
pouco? Como mulher, digo, como um caso: esqueça a afeição que nutres por mim,
considera apenas tu e ela.
- Bem, senhor Prudente, não há dúvida
que ela é muito interessante e vira a cabeça de qualquer homem.
- Pois que vire a tua!
- Como assim?
- Simples, há muito que desconfio de
minha mulher, senhor Cordeiro. E acho que se ela puder confiar em alguém irá
abrir o jogo, confessar tudo o que realmente sente por mim e outras coisas
mais, com o que podemos tirar dupla vantagem da coisa: eu, que decifro os
fatos, encaro a verdade por mais dura que seja. Tu, que desvendas o caso e
ascendes na carreira, que achas?
- Sei não, me parece arriscado.
- Arriscado? Só se for para mim,
Cordeiro; afinal tu podes te apaixonar por ela à vera e eu perco de todos os
lados, além de ver crescer sobre minha testa a galhada, que bem desconfio não
ser pequena...
- Bem, isto é verdade. De fato, então
havemos de fazer um trato, um mero trato. E quero que saiba, senhor Dorziro,
que minha amizade pelo senhor paira acima de qualquer coisa. Que tudo o que
eventualmente acontecer entre mim e sua mulher será apenas meios para apurar a
verdade. Chegar aos fatos.
- Feito.
II
À
noite Dorziro não deixou passar nenhuma oportunidade para realçar as qualidades
físicas e intelectuais do Cordeiro Leal, qualidades que sua mulher fingia para
ele que não via:
- O investigador João Ernesto? Que é
isso, Dor, imagine, acho que vc está vendo coisas!
Sim, quem não te
conhece que te compre, imaginava o português de seu lado; do outro a Aurinha já
se imaginava nos braços, abraços e amassos com o investigador, para ela um
“tesão fora de propósito” como gostava de comentar com as amigas, especialmente
a Laurinha, amiga e confidente.
Se era difícil
para o Leal manter a lealdade sem o aval do português, imagine como não foi a
coisa toda não só com o aval, mas praticamente com a ordem peremptória dele: a
paixão se alastrou mais rapidamente que o fogo no apartamento do sítio e em
pouco tempo estavam sob os lençóis das mais variadas camas, dos mais diversos
locais.
Bom de jogo, em
pouco tempo o Cordeiro Leal começou a pôr as cartas na mesa, a especular o
terreno, a apalpar as circunstâncias enquanto apalpava a mulher. Não demorou
muito e disse que estava tomado de uma paixão avassaladora, mas não aquelas
passageiras como chuva de verão, mas daquelas perenes e penetrantes como chuva
de invernada.
- Tá de brincadeira, Nestinho, aposto
que não me tem tanto amor assim.
- Claro que tenho.
Disse que não conseguiria viver longe dela,
que a cada dia ficava mais apaixonado, de uma paixão cada dia mais firme, mais
consistente e arrebatadora. Certo dia precisou se ausentar por alguns dias.
Especialmente para a despedida falsamente chorosa, e para dizer que sentia
saudades antecipadas, decorou um verso de Machado de Assis e declamou na
despedida como se fosse dele:
- A ausência
diminui as paixões medíocres e aumenta as grandes, assim como o vento apaga as
velas e atiça as fogueiras.
- Nossaaaaaaaaa
Nestinho, estou apaixonada por você. Sem remédio
III
- Estou apaixonada por ele, Laurinha, sem
remédio, repetiu à amiga.
- Vai deixar o
português?
- Vontade não me
falta, mas sair assim, sem mais? Ora, não dá, “miga”. Já que nunca me daria o
divórcio, se pelo menos fizesse o favor de morrer. Abria o inventário, pegava minha
parte na herança, a outra ficava para os coiós dos filhos dele e ia viver à tripa
forra com o Nestinho! Claro, antes ele saía da Polícia para ser meu; só meu.
- Mas o homem
tem saúde de ferro, pode esquecer isso.
- Claro, era só
algo conveniente, ‘miga’ sei que não acontecerá isso, ora bolas.
Mas, remoía a
ideia. Por que não? Já dera um jeito de sabotar o carro dos velhos. Maravilha!
Aquela desagradabilíssima sogra que nunca disfarçou que não gostava dela, só
porque não era “fina e elegante”, mas uma simples moça das Gerais. Pena o seu
Geraldo, coitado, um português bonachão; por ela não teria morrido, mas era
necessário, afinal tinha dois defeitos insanáveis: era marido da megera e dono
do cofre! Pensando bem, merecia morrer também, afinal todo mundo morre, e no
caso dele foi apenas uma questão de adiantar o relógio inexorável do tempo!
O incêndio
também. Mas, dupla falha. O fogo não pegou como deveria, a fumaça acordou o
marido. Ou ele não tomou o sonífero ou tomou pouco, enfim. Além desse desagradável inconveniente
sobreveio outro, bem pior. É que a história de que viera em socorro e por conta
da fumaça bateu com a cabeça no batente da porta, desfalecendo para acordar em
seguida sem traço de fuligem não pareceu bem aceita.
- Mas o
ferimento não está muito no alto da cabeça, Aurinha? Não deveria ser na testa? E
nem um naco de fuligem?
Quem perguntava
era o chato do filho mais velho dele, Romualdo, tão tonto quanto arredondado.
Tão obtuso quanto enfadonho.
- Não sei,
Romualdo; como eu vou saber, como vamos saber?
- Hummmmm, fazia
o Romualdo.
Com o que provocava olhares
espichados não só do Dor, mas da Aninha e do Felisberto, os outros filhos de
Dorziro.
Mas, quem sabe,
refletia a interesseira, quem sabe se bem cantado Nestinho não se encanta com a
ideia e a gente dá fim nele? Se ele me ama de verdade, refletia com o raciocínio
prático dos gananciosos, ele fará. Fará por mim, fará por nós, pelo nosso amor.
Na primeira
oportunidade, fez a proposta homicida. Claro, aceita na mesma hora. Passaram
ali mesmo a bolar como dariam cabo à vida do inconveniente Dorziro. Sem dor na
consciência!
IV
O português
acalentava uma ideia inamovível: entendia que só desmascararia a mulher se
pudesse fingir que morria. Morte com atestado de óbito, laudo necroscópico,
tudo certo, conforme a lei e a justiça. Expõe seu plano a Cordeiro Leal.
- Entendi perfeitamente,
Dorziro, você arma uma cena, finge que leva um tiro dela, finge que morre e sai
de cena prá poder investigar mais à vontade.
Mas, como saberemos que a Célia Áurea vai atirar em você? E o pior, quem
garante que não vai acertar, ainda que seja na antena?
- Simples, uso
um colete à prova de balas...
Porém, é interrompido pelo Cordeiro
com um sorriso mordaz:
- Tá brincando?
Acha que colete à prova de balas é um maiozinho que nem de ginasta olímpico? A
Áurea pode perceber se chegar perto de você. Até seus filhos são capazes de
perceber, e a farsa já era. Tenho outro plano.
- Como?
- Espere um
pouco. Vou delinear melhor e depois eu conto. Enquanto isso nos falamos.
- Correto, gajo,
mas tu não demores que estou querendo pôr cobro a jacto na situação.
E assim vão se
falando. Certo dia Cordeiro Leal telefona a Dorziro e diz que ele e Áurea
arquitetaram um plano. O português foi, asinha, ouvi-lo. Como a pilantra fala
com ódio, em seu íntimo querendo ela mesma dar um tiro “in cuore” do infelicitado
cônjuge. Ouve, sereno e estoico, como só acontece com os grandes cavalheiros, a
traição sórdida de sua mulher, arrumada entre suspiros e beijos nos braços do
amante, e contadas pelo próprio amante, coisa que deixaria qualquer um
enfurecido, mas não ele, expressão da temperança e da frieza.
Por sua vez o
policial admirava a fleuma, o controle e as boas intenções de Dorziro. Percebia
que Dorziro gostava dele e não seria nenhum exagero dizer que ele gostava mais
ainda do portuga. À medida que essa afeição espontânea crescia, mais e mais
fazia votos sinceros para que tudo desse certo e a bandida fosse realmente
desmascarada.
- Esse Dorziro,
pensava Cordeiro, esse Dorziro é de um valor moral inestimável; um verdadeiro
amigo, honesto, sincero com ele mesmo e com os outros. Que bom ter caído nas
graças dele e melhor ainda poder colaborar para que tudo se arranjasse da
melhor forma possível.
V
Entre lençóis,
Cordeiro Leal planeja a trama com a amante. É simples. Um jantar em família,
ela deixa a porta aberta, ele, disfarçado de ladrão entra no apartamento,
anuncia o assalto, dá um jeito de se atracar com Dorziro, deixa a arma cair no
chão, ela pega e atira no marido fingido que atirava no ladrão. Um plano
sensacional que ela aprova imediatamente.
Ele só não conta
a parte crucial: o revólver estaria municiado com balas de festim, a morte era
de mentira e o plano de Dorziro surtiria o efeito desejado. O mesmo plano o
amigo Leal combina com Dorziro, repassa-o nos detalhes:
- Então, Dorziro, vc usa aquela tinta vermelha
por debaixo da camisa, cuja tampa se abrirá graças ao mecanismo instalado em
suas costas. Quando nós nos atracarmos, deixo cair o revólver, aciono o
dispositivo tão logo a Áurea atire, puxo o equipamento bem rápido e guardo, o
que será fácil porque a atenção de todos estará voltada prá ela, pro tiro e prá
vc caindo.
- Sim, sim, mas
não te esqueças dos projéteis de festim.
Uma recomendação desnecessária, mas
não inválida, afinal de contas cautela e caldo de galinha não fazem mal a
ninguém.
- Claro,
Dorziro, os projéteis de festim são a alma da situação toda. Do contrário o
plano não funciona.
- Então está
acertado. Vamos tomar um cafezinho e aproveitar para um joguito da Sena, que me
parece que se acumulou e vai pagar mais de 100 milhões!
- Mas, você já e
rico, Dorziro.
- Sim, mas o jogo é por diversão, pois. E se
ganhar mais, mal não faz, não é?
Saem, fazem o
jogo. Cordeiro Leal acaba pegando o volante e se separam rapidamente, de sorte
que o investigador-amante-comparsa não tem tempo de entregar o comprovante ao
amigo. Bem que de longe ainda acenou para o querido companheiro, mostrando o
bilhete:
- Guarda contigo,
ouve como resposta.
Puxa, pensou o
comparsa, isso que é confiança. Um verdadeiro e bom homem. Que Deus o proteja.
VI
Sozinho em casa,
Cordeiro Leal mentaliza a cena que virá. Pensa nos detalhes, no projétil de
festim, arquiteta a maneira pela qual chamará a atenção do zelador e de como o
porá fora de combate. Dorziro já telefonara dizendo que havia prendido a
engenhoca no corpo, e tudo tinha saído como haviam combinado e ensaiado, não
uma, mas muitas vezes. Saboreia tudo isso antecipadamente. A fingida cara
triste da Célia Áurea na frente dos familiares após desfechar o tiro, a queda
do marido, o sangue. Apesar do lamentável erro de execução, a pose de heroína
por defender a família do violento roubador, que foge em meio à confusão, para
chegar logo depois na pele do investigador, ali por mero acaso, e já tomando
conta da situação.
Mas o bom, o bom
mesmo é que exceto Célia Áurea e Dorziro, ninguém sabia dele. Num autêntico “só
sabe quem precisa saber”, a parte que lhe tocava se restringia a eles e ninguém
abriria o bico, por óbvio. Tramando tudo no silêncio, era peça fundamental de
todo o esquema, mas agindo pela mão de outrem.
Está distraído.
Pensa no jantar, nos abraços fingidos entre marido e mulher. Talvez um beijo
ainda mais fingido. Ri consigo mesmo da situação, saboreia a vingança do bom
amigo Dorziro, merecedor de todas as homenagens, de toda lealdade, ainda mais
agora que conhece bem Célia Áurea, de quem ouviu confissões sobre as mortes dos
sogros, sobre o incêndio... Pobre e bom Dorziro, pensa ele, enquanto liga
maquinalmente o rádio e vai carregando o
revólver com as balas de festim. Uma a uma.
Subitamente é
tirado do devaneio ao ouvir o locutor:
- Atenção,
atenção para o sorteio da Mega Sena acumulada. O prêmio passa de 150 milhões.
Lembra-se do
bilhete do amigo deixado em suas mãos. Será que Dorziro se esqueceu? Ou lembra
bem que deixou com ele? Não tem como saber; e menos ainda se ele também ouviu o
resultado, se eram números que sempre jogava, se os filhos tinham conhecimento
da sequência. E o cartão está logo ali, marcando displicentemente um salmo
qualquer na Bíblia.
O locutor avisa
que os números serão repetidos. Não acredita quando vê que o português acertou
os 6 palpites!!!! Acreditou menos ainda quando ouviu que só teve um
ganhador!!!!
Que coisa, pensa
João Ernesto. Se é bom que exceto o casal (e cada qual ao seu modo) ninguém mais
sabe que ele seria o ladrão disfarçado, melhor ainda que detém o bilhete
vencedor. Mas, aquela dúvida lhe atenaza: Dorziro ouviu o sorteio? Sempre
jogava aquela sequência? E se cobrar o bilhete? Que maçada!
Um pequeno
sorriso lhe assoma no canto da boca acompanhando uma ideia excelente. E, calmo
e sereno, João Ernesto tira uma a uma as balas do tambor, repetindo a cada
projétil os números sorteados.
Resoluto e
confiante, marcha até a cômoda onde pega seis balas verdadeiras; e no mesmo
ritual, repetindo mentalmente os seis números da Mega Sena acumulada e
milionária, vai recarregando o revólver, cada bala um número sorteado.
Deixa o bilhete
no mesmo lugar, em meio aos salmos. Recebe agora a ligação de Célia Áurea confirmando
tudo, e antes de sair confere pela última vez o tambor e os projéteis, chega
até a beijar o último deles, como se fosse o último número sorteado, o
bilhete-projétil da sorte grande.
- E que sorte,
sorri consigo mesmo o amigo João Ernesto Cordeiro Leal!
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