terça-feira, 7 de outubro de 2014

Amizade

Por João Cirilo.


Chamava-se Dorziro Prudente e era português de Évora. Vivia de rendas como filho único de pais abastados, mortos num acidente de carro havia alguns anos, e morava no Rio. Casado em segundas núpcias – tinha 3 filhos do primeiro enlace – com Célia Áurea, que em matéria de amor tinha um temperamento eclético que Dorziro desconfiava, mas, conservador que era,  tolerava mais em nome das convenções do que qualquer outra coisa.

Mas, se desilusões amorosas são, dentro do possível, aceitáveis e contornáveis, não o são desconfianças mais sérias sobre assassinatos. Primeiro dos pais dele: dona Ana e seu Geraldo morreram num acidente de automóvel por falha mecânica, o que era muito estranho já que o velho era meticuloso com essas questões. Seja como for, a comoriência foi bem vinda para a Aurinha, que casada pelo regime da comunhão universal de bens com Dorziro, transformava-se em herdeira no mesmo ato em que se livrava da sogra, que nunca aceitou o casamento do filho com “aquela sirigaita”.

Além disso, havia a história do incêndio na casa de campo. Dorziro gostava de passar algumas horas num apartamento isolado da casa principal para ler, ver televisão ou tirar uma soneca. Num final de semana o local pegou fogo: só os dois estavam no sítio e ele cismou que ela havia acendido o fogaréu. Certo que nunca provou nada, talvez tudo não passasse de uma desconfiança, mas a desconfiança é assim, vai chegando de mansinho e depois que se instala não há meio de sair.

João Ernesto Cordeiro Leal era investigador de polícia e investigava o incêndio no sítio; portanto, encontrava-se costumeiramente com o casal. Dorziro percebeu sem muito esforço um derramar de olhos de sua mulher para o policial; uma espichada de prosa, um não-sei-quê de mesuras, um toque mal disfarçado (para não dizer sem disfarce algum) de vívido interesse.

Cordeiro era acima de tudo leal e se fazia de desentendido, seus olhos evitavam fitar os dela, fugiam apavorados com a atração fatal que a moça exercia através deles. Ah! Se fossem somente os olhos, mas a boca, o corpo, a voz: tudo exalava um cheiro gostoso e pecaminoso de sexo. Mas, lealdade acima de tudo...

O que Cordeiro Leal não podia esperar era o comportamento de Dorziro, que um dia o abordou em particular:
- Diga-me cá, gajo, a minha mulher espicha uns olhares para ti, estou certo?
O policial, que tinha sincero afeto pelo portuga e tomado pelo susto, procurou desconversar:
- De, desculpe senhor Prudente, gaguejou, mas não é nada disso, sua mulher é decente e...
- Acalme-se rapaz, acalme-se, prá começo de conversa me chame de Dorziro.
- Sim, senhor Dorziro.
- Pois muito bem, jovem. Eu simpatizo contigo e acho até que a simpatia é mútua, pois não?
- Não, quero dizer, sim senhor Dorziro. É exatamente isto. Eu gosto muito do senhor, e mesmo se sua esposa tivesse algum interesse em mim eu jamais deixaria isso fluir por conta do respeito, da amizade e do carinho que nutro pelo senhor. Uma amizade sincera vale por mil afoitezas do coração!
- Ah, falaste bem, meu jovem, falaste bem. Mas, diga-me cá, Cordeiro Leal, a minha mulher não te interessa nem um pouco? Como mulher, digo, como um caso: esqueça a afeição que nutres por mim, considera apenas tu e ela.
- Bem, senhor Prudente, não há dúvida que ela é muito interessante e vira a cabeça de qualquer homem.
- Pois que vire a tua!
- Como assim?
- Simples, há muito que desconfio de minha mulher, senhor Cordeiro. E acho que se ela puder confiar em alguém irá abrir o jogo, confessar tudo o que realmente sente por mim e outras coisas mais, com o que podemos tirar dupla vantagem da coisa: eu, que decifro os fatos, encaro a verdade por mais dura que seja. Tu, que desvendas o caso e ascendes na carreira, que achas?
- Sei não, me parece arriscado.
- Arriscado? Só se for para mim, Cordeiro; afinal tu podes te apaixonar por ela à vera e eu perco de todos os lados, além de ver crescer sobre minha testa a galhada, que bem desconfio não ser pequena...
- Bem, isto é verdade. De fato, então havemos de fazer um trato, um mero trato. E quero que saiba, senhor Dorziro, que minha amizade pelo senhor paira acima de qualquer coisa. Que tudo o que eventualmente acontecer entre mim e sua mulher será apenas meios para apurar a verdade. Chegar aos fatos.
- Feito.

II

            À noite Dorziro não deixou passar nenhuma oportunidade para realçar as qualidades físicas e intelectuais do Cordeiro Leal, qualidades que sua mulher fingia para ele que não via:

- O investigador João Ernesto? Que é isso, Dor, imagine, acho que vc está vendo coisas!

Sim, quem não te conhece que te compre, imaginava o português de seu lado; do outro a Aurinha já se imaginava nos braços, abraços e amassos com o investigador, para ela um “tesão fora de propósito” como gostava de comentar com as amigas, especialmente a Laurinha, amiga e confidente.

Se era difícil para o Leal manter a lealdade sem o aval do português, imagine como não foi a coisa toda não só com o aval, mas praticamente com a ordem peremptória dele: a paixão se alastrou mais rapidamente que o fogo no apartamento do sítio e em pouco tempo estavam sob os lençóis das mais variadas camas, dos mais diversos locais.

Bom de jogo, em pouco tempo o Cordeiro Leal começou a pôr as cartas na mesa, a especular o terreno, a apalpar as circunstâncias enquanto apalpava a mulher. Não demorou muito e disse que estava tomado de uma paixão avassaladora, mas não aquelas passageiras como chuva de verão, mas daquelas perenes e penetrantes como chuva de invernada.
- Tá de brincadeira, Nestinho, aposto que não me tem tanto amor assim.
- Claro que tenho.

 Disse que não conseguiria viver longe dela, que a cada dia ficava mais apaixonado, de uma paixão cada dia mais firme, mais consistente e arrebatadora. Certo dia precisou se ausentar por alguns dias. Especialmente para a despedida falsamente chorosa, e para dizer que sentia saudades antecipadas, decorou um verso de Machado de Assis e declamou na despedida como se fosse dele:
- A ausência diminui as paixões medíocres e aumenta as grandes, assim como o vento apaga as velas e atiça as fogueiras.
- Nossaaaaaaaaa Nestinho, estou apaixonada por você. Sem remédio

III

 - Estou apaixonada por ele, Laurinha, sem remédio, repetiu à amiga.
- Vai deixar o português?
- Vontade não me falta, mas sair assim, sem mais? Ora, não dá, “miga”. Já que nunca me daria o divórcio, se pelo menos fizesse o favor de morrer. Abria o inventário, pegava minha parte na herança, a outra ficava para os coiós dos filhos dele e ia viver à tripa forra com o Nestinho! Claro, antes ele saía da Polícia para ser meu; só meu.
- Mas o homem tem saúde de ferro, pode esquecer isso.
- Claro, era só algo conveniente, ‘miga’ sei que não acontecerá isso, ora bolas.

Mas, remoía a ideia. Por que não? Já dera um jeito de sabotar o carro dos velhos. Maravilha! Aquela desagradabilíssima sogra que nunca disfarçou que não gostava dela, só porque não era “fina e elegante”, mas uma simples moça das Gerais. Pena o seu Geraldo, coitado, um português bonachão; por ela não teria morrido, mas era necessário, afinal tinha dois defeitos insanáveis: era marido da megera e dono do cofre! Pensando bem, merecia morrer também, afinal todo mundo morre, e no caso dele foi apenas uma questão de adiantar o relógio inexorável do tempo!

O incêndio também. Mas, dupla falha. O fogo não pegou como deveria, a fumaça acordou o marido. Ou ele não tomou o sonífero ou tomou pouco, enfim.  Além desse desagradável inconveniente sobreveio outro, bem pior. É que a história de que viera em socorro e por conta da fumaça bateu com a cabeça no batente da porta, desfalecendo para acordar em seguida sem traço de fuligem não pareceu bem aceita.
- Mas o ferimento não está muito no alto da cabeça, Aurinha? Não deveria ser na testa? E nem um naco de fuligem?
Quem perguntava era o chato do filho mais velho dele, Romualdo, tão tonto quanto arredondado. Tão obtuso quanto enfadonho.
- Não sei, Romualdo; como eu vou saber, como vamos saber?
- Hummmmm, fazia o Romualdo.
            Com o que provocava olhares espichados não só do Dor, mas da Aninha e do Felisberto, os outros filhos de Dorziro.

Mas, quem sabe, refletia a interesseira, quem sabe se bem cantado Nestinho não se encanta com a ideia e a gente dá fim nele? Se ele me ama de verdade, refletia com o raciocínio prático dos gananciosos, ele fará. Fará por mim, fará por nós, pelo nosso amor.

Na primeira oportunidade, fez a proposta homicida. Claro, aceita na mesma hora. Passaram ali mesmo a bolar como dariam cabo à vida do inconveniente Dorziro. Sem dor na consciência!

IV

O português acalentava uma ideia inamovível: entendia que só desmascararia a mulher se pudesse fingir que morria. Morte com atestado de óbito, laudo necroscópico, tudo certo, conforme a lei e a justiça. Expõe seu plano a Cordeiro Leal.

- Entendi perfeitamente, Dorziro, você arma uma cena, finge que leva um tiro dela, finge que morre e sai de cena prá poder investigar mais à vontade.  Mas, como saberemos que a Célia Áurea vai atirar em você? E o pior, quem garante que não vai acertar, ainda que seja na antena?
- Simples, uso um colete à prova de balas...
            Porém, é interrompido pelo Cordeiro com um sorriso mordaz:
- Tá brincando? Acha que colete à prova de balas é um maiozinho que nem de ginasta olímpico? A Áurea pode perceber se chegar perto de você. Até seus filhos são capazes de perceber, e a farsa já era. Tenho outro plano.
- Como?
- Espere um pouco. Vou delinear melhor e depois eu conto. Enquanto isso nos falamos.
- Correto, gajo, mas tu não demores que estou querendo pôr cobro a jacto na situação.

E assim vão se falando. Certo dia Cordeiro Leal telefona a Dorziro e diz que ele e Áurea arquitetaram um plano. O português foi, asinha, ouvi-lo. Como a pilantra fala com ódio, em seu íntimo querendo ela mesma dar um tiro “in cuore” do infelicitado cônjuge. Ouve, sereno e estoico, como só acontece com os grandes cavalheiros, a traição sórdida de sua mulher, arrumada entre suspiros e beijos nos braços do amante, e contadas pelo próprio amante, coisa que deixaria qualquer um enfurecido, mas não ele, expressão da temperança e da frieza.

Por sua vez o policial admirava a fleuma, o controle e as boas intenções de Dorziro. Percebia que Dorziro gostava dele e não seria nenhum exagero dizer que ele gostava mais ainda do portuga. À medida que essa afeição espontânea crescia, mais e mais fazia votos sinceros para que tudo desse certo e a bandida fosse realmente desmascarada.

- Esse Dorziro, pensava Cordeiro, esse Dorziro é de um valor moral inestimável; um verdadeiro amigo, honesto, sincero com ele mesmo e com os outros. Que bom ter caído nas graças dele e melhor ainda poder colaborar para que tudo se arranjasse da melhor forma possível.

V

Entre lençóis, Cordeiro Leal planeja a trama com a amante. É simples. Um jantar em família, ela deixa a porta aberta, ele, disfarçado de ladrão entra no apartamento, anuncia o assalto, dá um jeito de se atracar com Dorziro, deixa a arma cair no chão, ela pega e atira no marido fingido que atirava no ladrão. Um plano sensacional que ela aprova imediatamente.

Ele só não conta a parte crucial: o revólver estaria municiado com balas de festim, a morte era de mentira e o plano de Dorziro surtiria o efeito desejado. O mesmo plano o amigo Leal combina com Dorziro, repassa-o nos detalhes:

-  Então, Dorziro, vc usa aquela tinta vermelha por debaixo da camisa, cuja tampa se abrirá graças ao mecanismo instalado em suas costas. Quando nós nos atracarmos, deixo cair o revólver, aciono o dispositivo tão logo a Áurea atire, puxo o equipamento bem rápido e guardo, o que será fácil porque a atenção de todos estará voltada prá ela, pro tiro e prá vc caindo.
- Sim, sim, mas não te esqueças dos projéteis de festim.
            Uma recomendação desnecessária, mas não inválida, afinal de contas cautela e caldo de galinha não fazem mal a ninguém.
- Claro, Dorziro, os projéteis de festim são a alma da situação toda. Do contrário o plano não funciona.
- Então está acertado. Vamos tomar um cafezinho e aproveitar para um joguito da Sena, que me parece que se acumulou e vai pagar mais de 100 milhões!
- Mas, você já e rico, Dorziro.
-  Sim, mas o jogo é por diversão, pois. E se ganhar mais, mal não faz, não é?

Saem, fazem o jogo. Cordeiro Leal acaba pegando o volante e se separam rapidamente, de sorte que o investigador-amante-comparsa não tem tempo de entregar o comprovante ao amigo. Bem que de longe ainda acenou para o querido companheiro, mostrando o bilhete:

- Guarda contigo, ouve como resposta.
Puxa, pensou o comparsa, isso que é confiança. Um verdadeiro e bom homem. Que Deus o proteja.

VI

Sozinho em casa, Cordeiro Leal mentaliza a cena que virá. Pensa nos detalhes, no projétil de festim, arquiteta a maneira pela qual chamará a atenção do zelador e de como o porá fora de combate. Dorziro já telefonara dizendo que havia prendido a engenhoca no corpo, e tudo tinha saído como haviam combinado e ensaiado, não uma, mas muitas vezes. Saboreia tudo isso antecipadamente. A fingida cara triste da Célia Áurea na frente dos familiares após desfechar o tiro, a queda do marido, o sangue. Apesar do lamentável erro de execução, a pose de heroína por defender a família do violento roubador, que foge em meio à confusão, para chegar logo depois na pele do investigador, ali por mero acaso, e já tomando conta da situação.

Mas o bom, o bom mesmo é que exceto Célia Áurea e Dorziro, ninguém sabia dele. Num autêntico “só sabe quem precisa saber”, a parte que lhe tocava se restringia a eles e ninguém abriria o bico, por óbvio. Tramando tudo no silêncio, era peça fundamental de todo o esquema, mas agindo pela mão de outrem.

Está distraído. Pensa no jantar, nos abraços fingidos entre marido e mulher. Talvez um beijo ainda mais fingido. Ri consigo mesmo da situação, saboreia a vingança do bom amigo Dorziro, merecedor de todas as homenagens, de toda lealdade, ainda mais agora que conhece bem Célia Áurea, de quem ouviu confissões sobre as mortes dos sogros, sobre o incêndio... Pobre e bom Dorziro, pensa ele, enquanto liga maquinalmente o rádio e vai carregando  o revólver com as balas de festim. Uma a uma.
Subitamente é tirado do devaneio ao ouvir o locutor:
- Atenção, atenção para o sorteio da Mega Sena acumulada. O prêmio passa de 150 milhões.

Lembra-se do bilhete do amigo deixado em suas mãos. Será que Dorziro se esqueceu? Ou lembra bem que deixou com ele? Não tem como saber; e menos ainda se ele também ouviu o resultado, se eram números que sempre jogava, se os filhos tinham conhecimento da sequência. E o cartão está logo ali, marcando displicentemente um salmo qualquer na Bíblia.
O locutor avisa que os números serão repetidos. Não acredita quando vê que o português acertou os 6 palpites!!!! Acreditou menos ainda quando ouviu que só teve um ganhador!!!!
Que coisa, pensa João Ernesto. Se é bom que exceto o casal (e cada qual ao seu modo) ninguém mais sabe que ele seria o ladrão disfarçado, melhor ainda que detém o bilhete vencedor. Mas, aquela dúvida lhe atenaza: Dorziro ouviu o sorteio? Sempre jogava aquela sequência? E se cobrar o bilhete? Que maçada!
Um pequeno sorriso lhe assoma no canto da boca acompanhando uma ideia excelente. E, calmo e sereno, João Ernesto tira uma a uma as balas do tambor, repetindo a cada projétil os números sorteados.
Resoluto e confiante, marcha até a cômoda onde pega seis balas verdadeiras; e no mesmo ritual, repetindo mentalmente os seis números da Mega Sena acumulada e milionária, vai recarregando o revólver, cada bala um número sorteado.
Deixa o bilhete no mesmo lugar, em meio aos salmos. Recebe agora a ligação de Célia Áurea confirmando tudo, e antes de sair confere pela última vez o tambor e os projéteis, chega até a beijar o último deles, como se fosse o último número sorteado, o bilhete-projétil da sorte grande.


- E que sorte, sorri consigo mesmo o amigo João Ernesto Cordeiro Leal!

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